Medicina em risco: quando a raposa quer cuidar do galinheiro

Por João Ladislau Rosa 22/10/2014

A saúde é um direito essencial, inalienável e de interesse comum - direito, aliás, consagrado constitucionalmente no Brasil. Cabe assim a diversas instituições uma série de deveres para que seja prestada adequadamente aos cidadãos. É o caso do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, Cremesp, cuja missão é promover o desempenho técnico e moral qualificado da medicina.

Esse princípio inclusive merece destaque na sexta edição do Código de Ética Médica, em vigor desde abril de 2010, em qual a prioridade maior pode ser resumida na frase: "Confiança para o médico, segurança para o paciente".

Justamente por ter esse compromisso, o Conselho realiza há nove anos o Exame Cremesp para os alunos recém-formados em medicina. O intuito é aferir os conhecimentos dos médicos que estão prestes a ingressar linha de frente de assistência; é zelar pela qualidade da formação, premissa para o atendimento de excelência aos pacientes.

Ocorre que estamos absurdamente distantes de atingir esse nível. Em todas as edições do Exame Cremesp, a maioria dos recém-formados obteve notas insuficientes. Em 2011, por exemplo, quase metade não soube interpretar uma radiografia e fazer diagnóstico após receber as informações dos pacientes. Metade também indicou tratamento errado meningite e não conseguiu identificar uma febre alta como risco de infecção grave em um bebê.

Essa perigosa insuficiência de conhecimento, em uma área em que estão em jogo a vida e a saúde de seres humanos, levou o Conselho de São Paulo a instituir, por meio da Resolução do Cremesp nº 239, a obrigatoriedade de realização do Exame para obtenção de registro de médico no Estado de São Paulo, independentemente do resultado obtido na prova.

Por lei não podemos impedir qualquer recém-formado de exercer a medicina - a despeito de ser essa nossa meta, vale o parêntese. Entretanto, os dados são fundamentais para denunciar à sociedade o problema da abertura indiscriminada de escolas médicas, visando somente o lucro e a quantidade. Também são essenciais para que possamos pressionar a classe política, o Ministério da Educação e o Governo Federal a empreender ações de fiscalização e a exigir que todas as escolas adotem um padrão mínimo de qualidade.

Quero frisar, com todas as letras, que o maior problema do ensino precário é localizado e de domínio público. As escolas particulares são campeãs de alunos reprovados no Exame Cremesp. Há exceções e cito uma delas: a Santa Casa de São Paulo, como as públicas, sempre alcança bons resultados.

É aqui que chego no ponto que motiva esse artigo e seu título - "Medicina em risco: quando a raposa quer cuidar do galinheiro". Às vésperas da edição 2014 do Exame Cremesp, realizado em 19 de outubro, o Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo (SEMESP) apelou a uma ação judicial na tentativa de desobrigar os recém-formados a se submeteram à prova.

É incompreensível que uma instituição que deve zelar pela qualidade da formação tome iniciativa contrária à coletividade. Não cabe ao Cremesp buscar explicações sobre quais interesses estão por trás da liminar do SEMESP. É nossa missão, porém, alertar os cidadãos sobre mais esse problema que pode gerar prejuízos irreversíveis à saúde e à boa prática da medicina.

Conseguimos na Justiça, por intermédio de embargos de declaração, protocolados pelo Departamento Jurídico do Cremesp, a suspensão da eficácia da liminar do SEMESP até a sua apreciação. Assim, o Exame aconteceu normalmente.

Entretanto, faço questão de registrar que é de livre arbítrio das faculdades de medicina particulares cobrar mensalidades escorchantes, de R$ 5 mil a R$ 8 mil. Quanto a isso nada podemos fazer, a não ser protestar. É nossa obrigação, contudo, zelar pela medicina de qualidade; e é dentro desse campo que temos o dever de lutar - e disso não abrimos mão - pela formação adequada de médicos que entram no mercado de trabalho para atender a população. Sempre é bom frisar: somos médicos e também pacientes: exigimos saúde de qualidade por todos nós.

João Ladislau Rosa, presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo