A Ética Cristã e o aborto (o ethos do amor)

Por Por Antonio Salustiano Filho (Tonhão) * 06/11/2023

Entre os temas em pauta na discussão daqueles (cientistas, religiosos e políticos) que debatem as mazelas sociais de nossos tempos, além das duas guerras mais visíveis no momento (os conflitos bélicos Rússia/Ucrânia e Israel/Palestina), estão as questões envolvendo as células-mãe, o aborto, e eutanásia, as questões envolvendo a moral do sexo e da família, o casamento e a cura gay, o problema da reprodução humana (uso de preservativo e a fecundação in vitro), a liberdade religiosa, o ensino da religião e a educação sexual nas escolas, a laicidade do Estado, entre outros.

São temas complexos, espinhosos e polêmicos que despertam paixões para além de uma consciência ética e moral. No campo da ciência, por mais avanço que tenhamos, não há consenso sobre as conclusões alcançadas nos vários campos de investigação cientifica sobre tais temas. No âmbito religioso, com raríssimas e honrosas exceções, há mais discursos fundamentalistas e dogmáticos eivados de um moralismo exacerbado, do que uma resposta teológica consensual, libertadora e satisfatória para o momento de obscurantismo religioso. No campo político é pior. “Dança-se conforme a música”, ou seja, trata-se de questões como as elencadas acima, de acordo com a conveniência eleitoral. Não há (sem exagero) políticos estadistas/republicanos, deveras comprometidos com a construção e vitalidade da consciência democrática do povo.

Em toda essa celeuma de vozes destoantes do debate plural, a palavra ética, muito usada atualmente, tem sentidos diferentes e ganha conotação distorcida com repostas desvirtuadas aos problemas acima delineados.

Este artigo pretende discutir o problema do aborto a partir da ética. Mas qual ética, se há uma confusão de eticidade na cultura mundial? Como cristão, e ser cristão significa seguir Cristo (eu prefiro Jesus de Nazaré), pretendo discutir o tema do aborto a partir da ética cristã. Você pode questionar, mas há uma ética cristã? E havendo, ela é diferente da ética filosófica? Não! Mas, como disse acima, a ética tem sofrido variações conceituais ao logo do tempo e da história e, mais ainda, nesses tempos pós-modernos e de verdades liquidas, é de bom alvitre que tenhamos referências para não sucumbirmos às tentações de mudanças de épocas e pensar a ética enviesada pelo pensamento da sociedade do vazio, do caos, da desordem e da desagregação. Jesus Cristo é um referencial ético para não desviarmos de uma ética verdadeiramente humana, tendo a vida e o amor como centralidades de nosso pensar.

Não se trata de uma ética de cunho “confessional”, mas da ética verdadeira, como pensada pelos gregos, e aprimorada pelo seguimento a Jesus de Nazaré, o Cristo. Ou seja, a centralidade da nossa reflexão é a defesa incondicional da vida e não defesa incondicional das normas ditadas pela religião sobre a vida. (CASTILLO, 2016, P. 12). Quero lembrar aqui aquela passagem do Evangelho de Marcos, quando Jesus curou o homem de mão seca e fora duramente criticado pelos seus opositores por estar infringindo as normas que vedavam qualquer atividade (e a cura era uma atividade) em dia de sábado. A reposta de Jesus foi em favor da vida e não da norma religiosa defendida pelos religiosos de plantão. (Mc 3, 1-6).

A Ética de Jesus é a do afeto, do amor, do espirito que se manifesta pela espiritualidade. O outro, como criatura de Deus, é objeto do meu afeto, do meu amor incondicional. “Quando o outro irrompe à minha frente, nasce a ética. (...). O outro significa uma pro-posta que pede uma res-posta com res-ponsa-bilidade.” (BOFF, 2003, p. 45). Quem tem afeto, quem ama, age movido pela espiritualidade, não promove morte à vida por que a vida, dom de Deus, é a centralidade da minha razão de viver. E quando falamos de vida estamos nos referindo a vida na sua totalidade e sob todas as formas como ela se manifesta no Universo, no Planeta, na Natureza, na Terra. Isso é espiritualidade em favor da vida.

Segundo Leonardo Boff,

“(...) espiritualidade, é aquela dimensão da consciência que permite ao ser humano sentir-se parte do todo e identificar um sentido maior a sua existência e de sua curta passagem por esse mundo. A espiritualidade está para a ética como a aura para as estrelas. Sem aura as estrelas não brilham, sem espiritualidade a ética facilmente se transfora em moralismo e em legalismo.”[1] Como queria os religiosos, adversários de Jesus. Portanto, refletimos a partir de uma espiritualidade cristã, a espiritualidade de Jesus de Nazaré.

A ética de Jesus é coisa do coração, do “pathos” (sentimento de compaixão e empatia pelo outro), é a capacidade de sentir o outro em profundidade. “A ética surge e se renova sempre que o outro emerge à nossa frente. Ele obriga a tomada de posição concretas, novas e inovadoras” (BOFF, 2003, p. 44) em relação ao outro. Mais ainda ao outro dentro de mim. Se eu não amo e não cuido de quem está em minhas entranhas, falta-me o sentimento de empatia e compaixão. Falta-me Deus no coração.

O outro dentro de mim não é apenas o embrião/feto/bebê, mas também a ideia do outro (de tantos outros) que existe dentro de mim. Cada ser ou elemento do Universo/Terra/Natureza que existe fora de mim e que eu percebo como materialidade, ou de forma imaterial, mas que existe como manifestação da vida na sua diversidade, existe antes dentro de mim como ideia.   

A mentalidade hedonista[2] mundana/desvirtuada vê no outro um empecilho para nossa felicidade. Isso é do paradigma ocidental. O outro, quando atrapalha, deve ser destruído ou submetido. Ao contrário disso, o cristianismo das origens nos ensina que outro é e a razão do meu agir. O outro faz surgir em mim a ética que ama. A centralidade do sentimento de Jesus de Nazaré é o amor ao outro. Amor este idêntico ao amor a Deus, portanto, um amor incondicional e radical, pois, inclui até o inimigo. Um amor que vem de Deus (1Jo, 4, 7) – Deus é amor (1Jo 4,8). Um amor que jamais morrerá (1Cor 13,8). Tocado por esse amor de Deus eu devo “amar o próximo como a mim mesmo” e “não fazer aos outros o que não quero que façam a mim”. (BOFF, 2003, p. 46).

Para Boff,

“O amor é assim central, porque para o cristianismo, o outro é central. Deus mesmo se fez Outro pela encarnação. Sem passar pelo outro, sem o outro mais outro que é faminto, o pobre, o peregrino, e o nu, não se pode encontrar Deus nem alcançar a plenitude da vida (Mt 25, 31-36). Esta saída de si em direção ao outro para amá-lo nele mesmo, amá-lo sem retorno de forma incondicional funda um ethos[3] [ética] o mais inclusivo possível, mais humanizador que se possa imaginar. Este é um movimento só, vai ao outro, à natureza e a Deus.”[4] Eu incluo no rol de tanto outros, o NASCITURO: o outro mais próximo de mim porque está dentro de mim.

Ainda sobre o “ethos” que ama, Boff vai dizer que.

“O ethos que ama funda um novo sentido de viver. Amar o outro é dar-lhe razão de existir. Não há razão para existir. O existir é pura gratuidade. Amar o outro é querer que ele exista, porque o amor faz o outro importante. ‘Amar uma pessoa é dizer-lhe: tu não morrerás jamais (G. Marcel), tu deves existir, tu não podes morrer.’ Quando alguém ou alguma coisa se fazem importantes para o outro, nasce um valor que mobiliza todas as energias vitais. É por isso que, quando alguém ama, rejuvenesce e tem a sensação de começar a vida de novo. O amor é fonte dos valores. [...]. Somente este ethos que ama pode responder aos desafios atuais que são de vida e morte. Faz dos distantes próximos e dos próximos, irmãos e irmãs.”[5] O ser humano tem paixão pela vida e pela morte.

Padre Zezinho, um dos maiores cancioneiros da evangelização cristã de todos os tempos, tem uma canção que diz: “Diante de ti, ponho a vida e ponho a morte, mas tens que saber escolher, se escolhes matar, também morrerás, se deixas viver, também viverás, então viva e deixa viver”[6], é uma referência bíblica a Deuteronômio 30, 15-20. Quem aborta um embrião/feto/bebê, não importa a razão, morre também, mas ainda não está morto(a), pois o processo de morte dura até momento derradeiro.  

A Igreja, em especial as de matizes cristãos, ao invés de insistirem na salvação de almas deveriam investir pesado na salvação de vidas neste mundo. Jesus de Nazaré, em momento algum de sua mensagem e prática, disse eu vim buscar almas para meu Pai que está no Céu. Pelo contrário, Ele fez curas e pregações para libertar os seres humanos, homens e mulheres, do seu tempo, das feridas e enfermidade do corpo, da ignorância impregnada na consciência das pessoas. Ensinou as multidões a partilhar os pães para saciar a fome do corpo. Expulsou os demônios para libertar as pessoas das doenças da mente. Quando ensinou a rezar disse, entre outras coisas, ao Pai: “venha nós o vosso reino” e não leva-nos ao céu; “seja feita a tua vontade assim (aqui) na terra como no céu”, ou seja, fazer aqui na terra como é feito no céu; “o pão nosso de cada dia dai-nos hoje”, o pão da vida é para o momento presente e não depois da morte. E outro momento, disse: “eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10,10), vida aqui e agora! Tudo o que Jesus disse e fez o disse e fez para salvar a vida na sua materialidade. Nisso está implícito a salvação de almas.

Religiosos de todos matizes são contra a educação sexual nas escolas, são contra a educação sobre a saúde reprodutiva, o uso de anticoncepcionais, e outros métodos contraceptivos, e por extensão são contra o aborto. Isso não é uma incoerência, hipocrisia, e coisas que o valha?  Homens e mulheres formados (educados) para vida, com conhecimento e responsabilidade pela sua sexualidade, não sairiam por aí praticando sexo sem compromisso ético com a vida que pode ser gerada com a relação sexual. Ou sexo, não faz parte do corpo e da alma dos seres humanos? E sendo parte do ser humano é um órgão estranho a Deus?

As igrejas de denominações cristãs estão incentivando e ensinando aos seus fiéis a participarem de manifestações de ódio contra a aprovação da descriminalização do aborto, como está sendo pedido ao STF na Ação de Arguição de Descumprimento de Preceitos Fundamentais, a ADPF 442. Deveria ensinarem, desde a catequese e nas escolas dominicais, meninos e meninas a terem conhecimento e responsabilidade sobre a sexualidade. Se isso ocorresse, com certeza, não teríamos tantos abortos como temos no momento atual. Eu penso, que o decreto, a lei e a norma antes devem estarem no coração e não arcabouço jurídico de uma nação.

Penso, que tais condutas “religiosas”, revestidas da ideologia da extrema direita fascista, em exigir que o Estado continue impondo a criminalização do aborto de forma patriarcal/machista é manifestação da falência das religiões que não conseguem persuadir seus fiéis, ou suas fiéis com o legado ético de Jesus de Nazaré – se que um dia essas religiões tiveram tal legado como missão – de preservar a vida pelo amor à vida e não matar em nome da libertinagem sexual. 

Ou seja, faliram em seus projetos de evangelização e disseminação de conhecimento ético/moral com valores religiosos e agora apelam ao Estado a exercer seu poder de potestade (poder de coerção) para impor um comportamento que deveria ser adquirido pelo poder de persuasão de quem deveria ter autoridade ética para persuadir pelo encantamento da fé que liberta, pelo convencimento consciente, plasmado pelo amor.  

*ANTONIO SALUSTIANO FILHO, advogado e militante dos movimentos sociais libertado